Alguns filmes merecem ser colocados no seu devido lugar. Era Uma Vez no Oeste (1968), dirigido pelo italiano Sergio Leone, é quase sempre associado ao spaghetti western, subgênero que nasceu na Itália dentro do método de produção em ciclos. Ou seja, um filão era escolhido e os estúdios realizavam em escala industrial, às vezes com um diretor criando dois filmes ao mesmo tempo, até que o tema esgotasse e o público deixasse de lotar as salas de exibição. Todavia, Era Uma Vez no Oeste é mais que um integrante do spaghetti, pois uma síntese, um mosaico de citações dos grandes filmes do gênero, contendo os principais estilos de personagens, como o herói solitário em busca de vingança e o vilão desalmado que atira em crianças sem pestanejar. Mas o diferencial desta obra de Leone é Jill, personagem da atriz Claudia Cardinale. Apesar de pouco desenvolvida dentro da trama, algo comum a todas as mulheres dos faroestes, a ex-prostituta que chega na cidade em expansão para conhecer a família do marido e encontra destruição, corpos por todos os lados, é a essência do novo mundo que surgia no Velho Oeste e também no cinema do final da década de 60.

A geração da Nova Hollywood dava os primeiros passos em 1969, ano do lançamento de Era Uma Vez no Oeste. Esse pode ser um dos motivos do fracasso de bilheteria do longa. E Jill, figura feminina dentro da aridez de uma terra que via o progresso chegar pelos trilhos da ferrovia, fugia do padrão. Não era nem a dependente e ciumenta Dolores, esposa de Cuchillo no clássico de Sergio Sollima Corre Homem, Corre (1968), mas também não era colocada em cena apenas para mostrar seus dotes físicos, como a protagonista de Uma Mulher Chamada Apache (1976), de Giorgio Mariuzzo. Jill se viu sozinha e sem dinheiro num território desconhecido. Suportava olhares de reprovação das ditas “moças de respeito” da cidade e precisou dialogar com homens num cenário onde mulheres abriam a boca para sorrir aos transeuntes. Belas, recatadas e do lar cruzaram o caminho de Jill, ao lado de machistas que enxergavam apenas sua beleza. É uma mulher empreendedora e corajosa, eclipsada por dois homens que protagonizam o duelo final.

Claro que Leone não escreveu o roteiro de Era Uma Vez no Oeste para que Jill brilhasse ou fosse feminista. Estamos falando de um italiano mais chegado em balas do que em direitos iguais, e que só não fez um close embaixo do vestido, revelando que a personagem estava sem roupas de baixo (naquele tempo não existiam calcinhas), porque Cardinale bateu o pé e ameaçou deixar o elenco. Seu olhar firme, decidido, de quem sabe fazer as coisas por si mesma foi impresso na tela pela atriz. O desequilíbrio, que colaborou para a opacidade de Jill dentro da trama, deve-se muito à trilha sonora. Sim, Ennio Morricone é um gênio, mas o leitmotiv (música que toca toda vez que o personagem surge, fazendo o público identifica-lo com os acordes) de Jill é o mais romântico dos compostos pelo maestro. Há um coro de vozes que soa quase como celestial. Angelicais. Assim soamos em Era Uma Vez no Oeste.

Parece radical a ideia de que uma atriz imprimiu, mesmo com sutileza, força feminista numa personagem que, dentro de seu universo, o spaghetti western, é sempre retratada sob a ótica masculina. Não temos ciência se Claudia Cardinale sabia o que estava fazendo ou se seguiu seu instinto para bater de frente com Leone, como na questão do close por baixo de sua saia. O importante é que, após o contato com as questões que buscam igualdade entre homens e mulheres (e é disso que o feminismo trata), ganhamos um novo olhar sobre Jill e sua jornada para sobreviver no Oeste. O sorriso que ela ostenta em sua última aparição no filme, servindo água para os trabalhadores da obra da construção da estrada de ferro, é o símbolo da esperança. Um oeste com regras bem estabelecidas ficou para trás. O trem trará mais que o progresso. Virá carregado de homens. Caberá a Jill e a sua astúcia entrar no jogo para vencer a opressão. Afinal, ela, e outras tantas que não viraram heroínas de filmes, foram tão pioneiras quanto os que usavam chapéu e botas.

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é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands.
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