Se encarada de maneira patológica, a ocorrência conhecida popularmente como ‘múltipla personalidade’ atende por um nome científico: transtorno dissociativo de identidade. Agora, se abraçadas as liberdades, inclusive, e, sobretudo, as poéticas que a arte nos oferece, a coexistência de personalidades distintas num mesmo indivíduo pode ter origens tão insólitas quanto insondáveis. E o cinema soube muito bem aproveitar-se dessa peculiaridade que, portanto, não necessariamente deriva nas telonas de um distúrbio mental, para construir tramas das mais diversas naturezas. Nossa motivação para escarafunchar os porões da memória a fim de montar este Top é a estreia de Fragmentado (2017), mais recente filme de M. Night Shyamalan, no qual o ator James McAvoy interpreta um personagem com nada menos que 23 diferentes personalidades. Confira a nossa seleção e não deixe de comentar.

Atenção: SPOILERS comendo soltos logo abaixo. 

 

 


O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde, 1920)
O cinema narrativo ficcional dava seus primeiros passos e uma das obras mais famosas sobre dupla personalidade já era fonte de inspiração. O diretor John S. Robertson convocou o ator John Barrymore para estrelar este clássico. E o resultado é uma das performances mais impressionantes de sua carreira. Utilizando espelhos e fazendo experimentos na área da maquiagem, esta adaptação da obra de Robert Louis Stevenson ainda impressiona o espectador, especialmente nos closes que mostram a transformação do pacífico Dr. Jekyll no malvado Mr. Hyde. Barrymore consegue, mesmo com clara influência teatral em sua interpretação, apresentar as sutilezas de seu personagem, num tour de force que deslumbrou as plateias da década de 20 e ainda se faz presente em muitas listas de melhores filmes de horror de todos os tempos. A versão de 1941, dirigida pelo especialista em grandes produções Victor Fleming, tem efeitos especiais mais modernos e Spencer Tracy como protagonista, mas não possui o charme e a força de Barrymore que, com o simples deslocamento de sua mandíbula, torna-se um dos monstros humanos mais assustadores da Sétima Arte. – por Bianca Zasso


Psicose (Psycho, 1960)
Hoje, graças a filmes como os desta lista, já estamos acostumados a plot twists que revelam que múltiplos personagens são, na verdade, apenas um – alguém que sofre de transtornos de personalidade. Em 1960, entretanto, as coisas não eram assim. Na famosa campanha de divulgação deste filme, Hitchcock fez o que podia para garantir o funcionamento de todas as surpresas: em uma mensagem gravada, ele pedia aos espectadores no cinema que não contassem o final do filme para seus amigos; nas portas das salas, uma placa com uma foto do próprio diretor avisava que ninguém – nem mesmo a Rainha da Inglaterra – poderia entrar depois do início da projeção. Tudo isso para proteger o grande jogo de manipulação. A narrativa deste filme tem tantas reviravoltas que consegue surpreender até mesmo quem já conhece a cena clássica de Marion Crane (Janet Leigh) sendo assassinada durante o banho. Hitchcock nos convence de que determinado personagem é o protagonista, depois muda completamente o rumo da história; criamos empatia por uma figura, e, de repente, estamos torcendo pelo vilão! Esta obra continua fantástica mesmo para quem já a conhece, mas a sensação de assisti-la pela primeira vez e finalmente descobrir a verdade sobre Norman Bates é incomparável. – por Marina Paulista

 
Vestida para Matar (Dressed to Kill, 1980)
Uma mulher (Angie Dickinson), frustrada sexualmente, sai da consulta com seu psiquiatra (Michael Caine) e acaba tendo um tórrido encontro com um homem que a persegue num museu. Quando sai do apartamento dele e resolve voltar para pegar a aliança esquecida, é morta por uma figura feminina. A única testemunha é uma garota de programa (Nancy Allen) que acaba sendo perseguida pela assassina. Ou seria assassino? Em uma de suas obras mais bem realizadas e com toques hitchcockianos mais que evidentes, Brian De Palma expõe vítimas que vivem na corda bamba da moral sob o olhar justiceiro de uma personagem complexada e que não se aceita como é. As referências a Um Corpo Que Cai (1958) e, especialmente, a Psicose (1960) são mais que presentes, pois dão a tônica da história. Como bom aprendiz do mestre do suspense, De Palma discute gênero e sexualidade através de uma psique fragmentada e da dupla personalidade, ainda que o espectador só comece a se dar conta disso com leves pistas até chegar ao seu clímax. Norman Bates criou seguidores. Alguns, tão ou mais assustadores quanto ele e sua mãe. – por Matheus Bonez


Zelig (1983)
Existem muitas histórias que retrataram figuras com múltiplas personalidades. Mas nenhuma como a deste longa-metragem de Woody Allen lançado em 1983. Até porque nunca existiu alguém tão camaleônico quanto Zelig, figura que só poderia sair da cabeça do cineasta norte-americano. Neste documentário falso, Allen aponta sua câmera para o homem do título, alguém tão sem personalidade que consegue assumir quaisquer que sejam os traços predominantes das pessoas com quem se relaciona. Se em seu convívio estão judeus ortodoxos, ele terá uma barba longa e peiot; se são negros, sua tonalidade de pele mudará de cor; se obesos, ganhará peso; e assim por diante. Por essa característica, Zelig foi uma celebridade na década de 1920, estudado pela doutora Eudora Fletcher (Mia Farrow), que se interessou demasiadamente pela figura peculiar de seu paciente. O tratamento é realizado e dá tão certo que Zelig vira um sujeito muito seguro de si – algo que, como vemos, não melhora muito sua situação. Woody Allen faz um filme deliciosamente insano, brincando com o gênero documentário (algo que já havia feito em Um Assaltante Bem Trapalhão, de 1969). Curiosamente, um longa de muita personalidade, retratando um sujeito que, ao mesmo tempo, tinha várias e nenhuma. – por Rodrigo de Oliveira


Síndrome de Caim (Raising Cain, 1992)
Após o fracasso de A Fogueira das Vaidades (1990), Brian De Palma retornou ao território familiar do suspense com este longa, revisitando os temas e obsessões que guiam sua obra. Para isso, além de referenciar os próprios trabalhos, como Vestida Para Matar (1980), o cineasta se voltou à sua influência máxima: Psicose (1960). As citações ao clássico de Hitchcock vão das recriações estéticas diretas, como a releitura da cena em que Norman empurra o carro de Marion no pântano, ao elemento do transtorno de múltipla personalidade que aflige o protagonista, o psicólogo infantil Carter Nix (John Lithgow), envolvido com o sequestro de diversas crianças, além do assassinato de mães e babás, no intuito de realizar experimentos sobre o controle da mente. Estes crimes são cometidos por uma das personalidades de Carter – Caim, seu “irmão gêmeo” – e geram a desconfiança de sua esposa (Lolita Davidovich). Ainda que não isento de irregularidades, como o tratamento superficial dado aos aspectos clínicos do distúrbio, o filme se vale do virtuosismo inegável de De Palma na construção de tensão em cenas visualmente arrebatadoras, além da atuação magnífica de Lithgow. Compondo cinco personagens distintos, o ator apresenta um trabalho exemplar, digno de maior reconhecimento. – por Leonardo Ribeiro


Clube da Luta (Fight Club, 1999)
O difícil ao falar sobre filmes que tratam de personagens com distúrbios psicológicos é que normalmente isto é utilizado como reviravolta na trama e, portanto, se torna fácil incorrer nos famigerados spoilers. Mas tudo bem, a graça desta obra-prima de David Fincher não se perde ao conhecermos o desfecho. Pelo contrário, saber que O Narrador (personagem vivido por Edward Norton) é a mesma pessoa que Tyler Durden (Brad Pitt) dá à experiência de assistir ao longa uma perspectiva completamente nova. É como vê-lo pela primeira vez. Fincher, mestre em conduzir suspenses e thrillers psicológicos, emprega a sua condução sempre tão preocupada em imergir o espectador na narrativa, para nos ludibriar do lado de cá e desviar a nossa atenção para as filosofadas dos párias vividos por Norton e Pitt, que fundam uma espécie de grupo secreto que organiza lutas clandestinas com propósitos revolucionários. Baseado no livro do controverso autor Chuck Palahniuk, o filme oferece toda uma nova gama de leituras e detalhes que enriquecem a obra de maneira a torna-la imortal, especialmente quando se sabe da dissociação de identidade do(s) protagonista(s), provando que uma produção inteligente não só sobrevive a inúmeras revisões, como assume outras identidades a cada nova visita. – por Yuri Correa


Trilogia O Senhor dos Anéis (The Lord of The Rings, 2001 – 2003)
Ao longo de dois dos três anos em que a trilogia de Peter Jackson esteve presente nos cinemas de todo o mundo, Sméagol/Gollum (Andy Serkis) foi, sem dúvida, o personagem mais comentado pelos fãs das adaptações da obra de J.R.R. Tolkien. Figura degenerada pelo poder de corrupção do Um Anel, o guia de Frodo (Elijah Wood) e Sam (Sean Astin) no caminho para Mordor roubava todas as suas cenas com as manifestações de sua dupla personalidade, devotando ao mesmo tempo certo amor pelo portador do anel e ódio mortal principalmente pelo companheiro de viagem desse último. Mas a força de Sméagol/Gollum, que chegou a alimentar campanhas para uma histórica indicação ao Oscar de Serkis, está, sobretudo, no peso trágico que o personagem carrega, funcionando como espelho que revela a Frodo o que ele poderia se tornar caso não se livrasse do Um Anel. Jackson compreendeu isso muito bem, fazendo questão de incluir em O Retorno do Rei (2003), último capítulo da trilogia, um doloroso prólogo de apresentação de Sméagol, dando a Serkis a oportunidade de surgir em cena com seu verdadeiro rosto e acompanhando todo o processo de degradação do personagem provocado pelo “vício” no artefato de Sauron.  – por Wallace Andrioli


Hulk (2003)
Esta é a primeira grande produção de Ang Lee em Hollywood. Sem dúvida, o realizador asiático é o que melhor explorou os conflitos entre Bruce Banner e Hulk. Por meio da atuação de Eric Bana, o cientista vive constantemente entre os desafios da profissão e a necessidade absurda de aprovação, ora da figura imponente do pai (Nick Nolte), ora dele mesmo, já que suas pesquisas soam como piada para alguns. O clima pesado e cheio de momentos insólitos fez com que o próprio Lee admitisse que a produção tomou rumos mais tristes do que o incialmente programado, gerando ainda mais momentos de tensão esperados pelo público. Diferentemente de O Incrível Hulk (2008), com um Edward Norton mais consciente e lúcido, e de Os Vingadores (2012), com Mark Ruffalo emulando um insistente alívio cômico, aqui Eric Bana expressa as profundezas dos conflitos. Entre grandes obras que exploram múltiplas personas, o filme que integra o início da grande era dos heróis na telona serve como guia para todos os próximos sobre o gigante esmeralda, sobretudo em virtude do trabalho de Bana, que permitiu o surgimento de uma interessante variação da obra literária O Médico e o Monstro. – por Victor Hugo Furtado


Ilha do Medo (Shutter Island, 2010)
Incluir este subestimado e classudo thriller de Martin Scorsese numa lista sobre múltiplas personalidades é entregar surpresas para quem não o assistiu ou intrigar aquele que interpretou o fim da trama de modo diferente. De qualquer forma, a adaptação do excelente livro de Dennis Lehane merece sua distinção por tratar de temas caros à psiquiatria num intrigante suspense psicológico protagonizado por Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley Michelle Williams. Você já entendeu que o elenco é excepcional. No filme ambientado em 1954, DiCaprio interpreta Teddy Daniels, oficial enviado para investigar o desaparecimento de uma interna de sua cela num presídio manicomial. Logo ele passa a suspeitar de tudo e de todos: um psiquiatra parece gentil demais; os guardas são fortemente armados; um farol próximo aterroriza os pacientes. Para piorar as circunstâncias, um furacão está se aproximando e seu parceiro, Chuck (Ruffalo), soa cada vez mais ambíguo. Com uma narrativa por vezes confusa que não apara todas as arestas propostas em seu roteiro, o longa tem como maior trunfo a direção excepcional de Scorsese, que abusa de pirotecnias estéticas e linguagem soberbas – entre belíssimas sequências oníricas e flashbacks – para criar tensão e prestar tributo ao classicismo hollywoodiano dos anos 1950. – por Conrado Heoli


Cisne Negro (Black Swan, 2010)
Neste psicodrama dirigido por Darren Aronofsky, Natalie Portman, a atriz vencedora do Oscar por sua performance, interpreta Nina, bailarina reprimida pela mãe, envolvida numa espiral de acontecimentos que a levam a questionar a própria sanidade. A pressão para estrelar O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, pede à protagonista uma polarização de identidade, quase uma dualidade entre o bem e o mal ao retratar os cisnes branco e negro. Conforme sua busca por aprofundamento no papel avança, a protagonista, muito introspectiva e perfeccionista, encontra na representação do cisne negro sua metamorfose numa persona completamente diferente. Nina logo se torna um ser muito sexual e agressivo, seja consigo mesma ou com aqueles ao seu redor. Aronofsky não chega a impor uma nova personalidade com uma ideia de esquizofrenia, mas sim uma psicopatia que estava latente no âmago da garota. Já Portman cria Nina de maneira belíssima e dolorosa, explorando os efeitos de uma repressão pessoal e as consequências que isso pode trazer ao psicológico de um indivíduo. Um ser considerado “fragmentado”, mas ainda assim perfeito à sua maneira. – por Renato Cabral

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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