Há algum tempo não se via a crítica e os cinéfilos brasileiros tão divididos quanto a um filme. Não pela quantidade, pois gosto é variável e sempre vão haver os que adoram e os que detestam alguma obra. Esperto do crítico que sabe alienar seu trabalho disso, aliás. No entanto, o italiano A Grande Beleza (2013) trouxe um grande cisma: é adorado apaixonadamente por alguns, que o dão cinco estrelas e bonequinhos que aplaudem de pé, enquanto é achincalhado por outros, que parecem desconfiar da lucidez de seus opositores.

É perfeitamente possível entender o motivo do filme ter sido incensado: as críticas se esmeram em explicar e dissecar cada detalhe do longa. O texto do Willian Silveira, aqui do Papo de Cinema, é um excelente exemplo. Há, por exemplo, uma certa unidade entre os promotores de A Grande Beleza no sentido de destacar que o filme tem muito do cinema italiano pregresso, especialmente Fellini. Diz-se também que tem tons ensaísticos e que é barroco em sua composição visual.

Já entre os detratores, a coisa é mais caleidoscópica: há quem acuse Sorrentino, diretor do longa, de vender uma imitação barata de Fellini. Barroco, usado como elogio por uns, também serve para apontar o dito exagero da obra. Há quem destaque que o roteiro se perde, assim como seu protagonista. E talvez por isso, quem não curtiu A Grande Beleza diga também que o filme é afetado e hermético. E, como não podia faltar, dizem que o longa é pretensioso.

Mas afinal, por que tanta aversão a um filme obviamente artístico, de beleza plástica inegável e com reconhecimentos internacionais como a indicação ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e a participação na Mostra Competitiva do Festival de Cannes?

Ao que parece, Fellini é um dos núcleos do problema. É um dos pivôs do celeuma. Complexo, às vezes surreal e com um cinema claramente mais ensaístico que narrativo, o italiano bagunça o coreto de todo mundo que acha que a função de um filme é contar uma história. Aliás, desconstruir histórias é uma especialidade de Fellini, que o digam 8 1/2 (1963) e Ensaio de Orquestra (1978), por exemplo. Mas estando morto, incensado e enterrado, estava a crítica brasileira livre do incômodo de “explicar” aquilo tudo novamente pro público (se é que tinha explicação). Mas aí vem um outro italiano, sem o mesmo cacife daquele, e trama um filme naqueles moldes, ainda por cima complicado com questões contemporâneas. Chato. “Pretensioso”.

Isso de ser pretensioso é engraçado. Toda obra de arte – e nem foi ideia minha chamar o cinema de sétima arte – nasce da pretensão. Pretensão mínima de traduzir um sentimento ou mensagem num suporte estético, que seja, mas ainda assim uma pretensão. Não sei de onde tiraram então que o cineasta, coitado, tem que entrar humildezinho, pedindo licença, dizendo que o filme “é pobre, mas é limpinho”. Sorrentino faz parte do grupo que entra fazendo barulho, colocando um elenco de figurantes para dançar numa luxuosa varanda, com cores saturadíssimas e um letreiro em neon ao fundo. Baz Luhrmann deve ter morrido de inveja. Muita gente morreu de raiva.

Mas há uma outra questão, esta mais complexa, que também acredito ser uma chave para compreender, situar e talvez até gostar d´A Grande Beleza. A escolha de Fellini, assim como a repetição de paisagens célebres italianas, o dandismo do personagem, as cores saturadas, quase renascentistas… tudo isso remete à Itália. E não é à toa: Jep Gambardella, o protagonista, é muito mais do que um autor em crise criativa: é a própria Itália em crise econômica, pós-Berlusconi. A associação é feita em diversos momentos, mas ganha amplitude especial e quase literal quando o autor visita o local onde conheceu seu grande amor e, no mar antes límpido e imenso, encontram-se os restos do Costa Concordia, luxuoso navio de cruzeiros naufragado recentemente. É uma mensagem clara, astuta e íntima, quase doméstica. Uma mensagem que talvez fale muito mais aos italianos – e consequentemente seus colegas de União Europeia – do que a nós. O que também nos priva, a princípio, de todo o caldo que o filme pode dar.

O fato de a decadência humana, social, econômica e, em última instância, estética, ser apresentada de forma espetacular talvez seja outro grande incômodo de A Grande Beleza. É quase sádico deliciar os olhos e os ouvidos com as belíssimas imagens e a luxuosa trilha sonora quando se sabe que, no fundo, estão falando do inevitável e mórbido futuro a que todos estamos condenados.

Não é um filme fácil, sem dúvida. Mas buscar sua Grande Beleza, como faz seu protagonista (por sinal um velho ranzinza), talvez seja a forma mais fácil e mais gostosa de atravessá-lo ileso. Até porque, já dizia Ralph Wando Emerson, filósofo, que “o amor pela beleza é gosto. A criação da beleza é arte“. Gosto não se discute. Arte sim.

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é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
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