Apocalypto (2006) talvez seja a melhor síntese possível do cinema de Mel Gibson. Ambientado na península do Yucatán, hoje parte do México, no início do século XVI e falado num dialeto maia, o filme atende ao desejo do diretor por verossimilhança extrema (mas não necessariamente fidelidade absoluta) na reconstituição de outros períodos históricos. Ao narrar a trajetória de um homem comum lutando para sobreviver e defender sua família da opressão de um inimigo mais forte, o cineasta retoma temas de Coração Valente (1995), voltando a construir um herói viril – potente sexualmente e implacável no campo de batalha –, representante de uma comunidade fraternal que, vivendo seus momentos derradeiros, carrega, para o realizador, considerável carga utópica. Por fim, trata-se de um filme que, no limite, justifica a conquista e a catequização dos povos daquela região pela Igreja Católica.

Isso se dá pelo seguinte: apesar de não haver em Apocalypto qualquer foco em personagens europeus ou no tema da conquista da América, o filme abre com a frase “uma grande civilização não é conquistada de fora até ter se destruído por dentro”, do historiador norte-americano William Durant, para, na sequência, apresentar a decadência do império maia, entregue à brutalização de povos vizinhos e à manipulação dos seus por meio de crendices religiosas que levam, suprassumo do horror no ponto de vista adotado por Gibson, à prática de sacrifícios humanos. Resta implícito, talvez nem tanto, um discurso pró-europeu, algo esperado de um católico tradicionalista como o diretor – e, claro, altamente contestável dentro dessa própria chave do catolicismo, considerando, por exemplo, a atuação do Tribunal da Inquisição na Europa em períodos próximos ao da história narrada no filme.

Mel Gibson nos bastidores de Apocalpyto

Por outro lado, há méritos em romper com uma versão idealizada dos grandes impérios pré-colombianos, cultivada muitas vezes no intuito de valorizar uma herança cultural em vias de se perder e que tende a apresentá-los como simplesmente belos e gloriosos diante da violência e da mediocridade europeias. Além disso, o próprio esforço de Gibson de descoberta de uma cultura muito diversa da sua e de representação fílmica dessa cultura, realizando um filme todo falado em dialeto quase completamente desconhecido, é admirável. Há, aqui, uma postura de saída da zona de conforto, tensionada com o retorno à mesma na reutilização de temas e valores presentes no cinema pregresso do cineasta.

Mas o grande mérito de Apocalypto está em sua construção enquanto o que há de mais básico na linguagem cinematográfica: a ideia de imagens em movimento. Movimento é, aliás, o conceito chave do filme. Por se tratar de uma trama sobre mudança e busca por um novo começo, seus personagens estão sempre se deslocando, correndo, fugindo da destruição ou buscando causá-la – a exceção é a cena, ainda no primeiro ato, ao redor da fogueira, espécie de tomada de fôlego antes do mergulho e, ao mesmo tempo, anúncio literal do que está por vir. Isso imprime ao longa um ritmo impressionante, vertiginoso, que em boa medida lembra o recente Mad Max: Estrada da Fúria (2015), reimaginação de um personagem interpretado, outrora, pelo próprio Gibson. O trajeto percorrido por Jaguar Paw (Rudy Youngblood, ator de rosto extremamente expressivo), de saída e retorno a um mesmo local, também se assemelha ao de Max (Tom Hardy) e Furiosa (Charlize Theron), enquanto o visual da capital maia e as relações de dominação estabelecidas entre seus governantes e a população não estão muito distantes de como George Miller imaginou a cidadela comandada por Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne).

Mel Gibson nos bastidores das filmagens de Apocalypto

Esses pontos de contato entre Apocalypto e Estrada da Fúria, mais do que revelar uma possível influência de Gibson sobre Miller, seu velho amigo e mentor, reforça a percepção do primeiro filme como síntese perfeita do cinema feito pelo astro, dada a importância da franquia Mad Max em sua formação como realizador – e vale lembrar que Estrada da Fúria carrega muitos elementos de seus predecessores, sobretudo de Mad Max 2: A Caçada Continua (1981). Mas, talvez, o que o torna mais fortemente caracterizável como um filme gibsoniano seja a centralidade da violência, ou, mais que isso, de imagens de violência em sua narrativa. Gibson demonstra em sua filmografia, de Coração Valente a Até o Último Homem (2016), um prazer particular em registrar atos de brutalidade. Trata-se quase de um fetiche – ainda que não haja em seus filmes qualquer atenuação dos efeitos desses atos sobre o corpo humano (como há, por exemplo, na obra mais recente de Tarantino, marcada por certa cartunização da violência) –, cujo ápice talvez seja A Paixão de Cristo (2004), em que Jesus (Jim Caviezel) ganha um tratamento semelhante ao dos jovens torturados e assassinados em filmes de horror gore. Mas é em Apocalypto que Gibson melhor coreografa essa violência, transformando a fuga de Jaguar Paw pela floresta, em que cada movimento de seu corpo e dos de seus perseguidores interagindo com o espaço é milimetricamente calculado, numa deslumbrante dança de vida e morte.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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