Surgido como revelação, rapaz prodígio e futuro do cinema, Orson Welles foi do céu ao inferno logo no seu filme de estreia: Cidadão Kane (1941), aquele apontado por muitos como o melhor de todos os tempos, mas que no seu lançamento foi recebido com desconfiança e, até mesmo, desprezo. Um gênio que dificilmente se curvava aos ditames da indústria hollywoodiana, Welles tentou a todo custo construir uma carreira independente e autoral, ainda que nem sempre tenha sido bem sucedido neste intento. Mesmo assim, deixou uma obra impressionante, tanto como diretor, roteirista, produtor, editor e ator. Indicado ao Oscar apenas pelo primeiro longa – concorreu como Direção, Ator e Roteiro, tendo ganho neste último – recebeu, trinta anos depois, um segundo troféu, dessa vez honorário, em reconhecimento a este talento superlativo que até hoje repercute entre fãs e admiradores. Reconhecido ainda nos festivais de Cannes e Veneza, foi um dos últimos grandes autores a deixar sua marca registrada na sétima arte mundial. Por tudo isso, e muito mais, recebe nossa justa homenagem na data do seu aniversário, com esse seleção comentada dos seus cinco melhores filmes, além de mais um trabalho que merece ser (re)descoberto. Confira!

 

Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941)
O que é Rosebud? O que significa essa última palavra dita pelo homem que tinha tudo? Esse é o mistério que move o jornalista Jedediah Leland (Joseph Cotten) a investigar a trajetória de Charles Foster Kane (Orson Welles), um milionário, político, barão da mídia e figura pública notória e de grande influência, desde a sua origem humilde, até a opulência de seus últimos dias em Xanadu, o palácio que mandou construir. Escrito, dirigido, protagonizado e produzido por Welles, esse filme se firmou como um dos mais importantes da história do cinema. Primeiro por representar um esforço epopeico por parte de seu idealizador, segundo por apostar em uma linguagem inovadora para a época. Apostando em uma cronologia não linear, na inserção de narrativas dentro da narrativa (e isso vale tanto para os flashbacks quanto para casos como a montagem fictícia que abre o filme) e ainda em enquadramentos simbólicos, o cineasta rompeu com toda uma linguagem e estabeleceu novas regras que, hoje, se tornaram lugar comum no cinema moderno. Isso sem contar a técnica, que inovou a arte de usar efeitos práticos, de filmagem e de pós-produção. Apesar do esforço e da relevância, o filme recebeu apenas o Oscar de Melhor Roteiro Original, e foi a História quem tratou de reconhecê-lo como deveria. – por Yuri Correa

 

Soberba (The Magnificent Ambersons, 1942)
O segundo longa dirigido por Orson Welles é, compreensivelmente, um dos seus títulos mais menosprezados. Mas isso hoje, 75 anos após o seu lançamento, e não quando chegou às telas com grande expectativa. Após um início que visava abalar as estruturas do cinema norte-americano como até então era feito, Welles prova aqui que também era hábil em se adaptar a um modo mais tradicional para se contar uma história. Para tanto, partiu do romance clássico de Booth Tarkington sobre uma família cujo filho único é motivo de glória e tristeza para todos ao seu redor. O sentimento de posse que sente em relação à mãe tanto a impede de seguir com sua vida como também o complica ao tentar prosseguir com a própria. Mas se o diretor e roteirista visava um final mais depressivo, o estúdio aproveitou sua ausência – estava no Brasil filmando o inacabado É Tudo Verdade – para retirar quase 50 minutos de cenas já prontas e introduzir um final feliz. O resultado, portanto, pode estar distante do que Welles havia imaginado (“esse filme poderia ter sido maior do que Cidadão Kane”, chegou a afirmar), mas ainda assim contém a presença inegável de sua genialidade, para o bem e para o mal. – por Robledo Milani

 

A Dama de Shanghai (The Lady from Shanghai, 1947)
Atualmente um objeto de culto quase tão respeitado quanto Cidadão Kane (1941) dentro da filmografia de Orson Welles, este exercício noir foi um fracasso de bilheteria à época de seu lançamento, algo que muitos creditaram à polêmica em torno da transformação da protagonista: Rita Hayworth. Welles, então marido da atriz, não só mandou cortar, como também tingir de loiro os inconfundíveis cabelos ruivos da estrela, algo que chocou o público, mas serviu perfeitamente ao propósito do longa, fazendo de Hayworth uma das mais emblemáticas femme fatales da história do cinema. Ela interpreta Elsa, esposa do advogado criminal Arthur Bannister (Everett Sloane), e que acaba se relacionando com o marinheiro irlandês Michael O’Hara (Welles), contratado para trabalhar no iate do casal. Com uma trama repleta de reviravoltas, envolvendo o assassinato do sócio de Arthur, Welles, novamente assumindo múltiplas funções, conduz um suspense exemplar, elevado por seu consagrado apuro visual. Tal maestria lhe permite a criação de sequências inesquecíveis, como o clímax passado na sala de espelhos de um parque de diversões, cena copiada e homenageada pelos mais diversos realizadores até hoje. Mesmo tendo seu corte original modificado pelo estúdio, o resultado final permanece como um dos trabalhos mais celebrados do cineasta. – por Leonardo Ribeiro

 

A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958)
Orson Welles sabia estudar o ser humano através de seus filmes como poucos. Numa época em que o cinemão de Hollywood privilegiava tramas com mocinhos e bandidos bem definidos numa lógica maniqueísta, o cineasta ia na contramão e subvertida esta ideia com personagens recheados de camadas. Neste título, essa ideia vai além de excelência ao apresentar a trama de dois policiais que investigam um atentado com bomba na fronteira entre os EUA e o México. Charlton Heston pode até ser o nome principal nos créditos como o “bonzinho” oficial mexicano, mas é o próprio Welles, aqui não só na direção do longa, que rouba a cena como o corrupto Hank Quinlan. Amoral, sem escrúpulos e com muito rancor do passado por não ter conseguido resolver o assassinato de sua esposa, o policial é uma figura de meter medo por não sabermos o que ele fará a seguir. Além de uma poderosa atuação, nosso homenageado também subverte as regras do cinema noir na direção, utilizando apenas a estética de contraste entre luz e escuridão para expor a alma de seus personagens. Uma obra-prima que merece ser tão lembrada quanto Cidadão Kane, seu título mais famoso e com o qual este longa conversa de uma forma tão abrangente. – por Matheus Bonez

 

O Processo (Le procès, 1962)
Embora Cidadão Kane seja uma das obras mais importantes da história do cinema, sempre aparecendo no topo de qualquer lista de melhores filmes de todos os tempos, a saga de Charles Foster Kane não foi o trabalho favorito de Welles. Para ele, segundo uma entrevista dada à BBC em 1962, este é o melhor filme de sua carreira. Nesta adaptação do livro homônimo de Franz Kafka, Anthony Perkins vive Josef K., um burocrata que, um belo dia, acorda com estranhos invadindo seu quarto e declarando que ele será levado para a prisão, sem jamais revelar por qual crime ele está sendo acusado. Como num interminável e claustrofóbico pesadelo, o homem tenta, a todo custo, compreender sua acusação e provar sua inocência. Aqui, tudo é coordenado perfeitamente para envolver a história numa atmosfera desesperadora: a sempre presente vulnerabilidade de Perkins – característica da qual Alfred Hitchcock já havia se aproveitado em Psicose, dois anos antes – os cenários surreais e exagerados, as sombras acentuadas, o humor absurdo e a aparente falta de lógica interna do universo. Este longa pode até não adaptar tão fielmente a narrativa de Kafka, mas é um excelente exemplo visual do significado da palavra “kafkaesco”. – por Marina Paulista

 

+1

 

Verdades e Mentiras (F For Fake, 1973)
Quando abordamos a carreira de Orson Welles, prontamente nos lembramos de suas realizações obviamente mais celebradas. As aqui citadas anteriormente, por exemplo, ou as adaptações de Shakespeare para o cinema, enfim, a lista de notáveis é invejável. Todavia, infelizmente pouco se fala deste documentário lançado nos anos 70, no qual faz uma investigação vertiginosa das idiossincrasias de um exímio falsificador de obras de arte e, de quebra, do escritor igualmente loroteiro que forjou uma biografia do recluso Howard Hughes. Surgindo repetidas vezes à frente das câmeras, paramentado como um prestidigitador genuíno, Welles faz desses dois exemplos pontes para discutir o que torna algo uma obra de arte, produzindo aparentemente mais perguntas que respostas, embora não se furte de lançar um olhar ferino, ainda que afetuoso, à própria posição de cineasta. Não bastasse isso, a forma do filme reflete essa busca, amplificando-a. Tudo que nos conta é factual, apenas porque ele, imbuído da autoridade de narrador/cineasta, pretensamente teria a obrigação de evitar dissimulações? Talvez nenhum outro exemplar da filmografia de Welles rime tanto com a sua famosa transmissão radiofônica de Guerra dos Mundos quanto este documentário. – Por Marcelo Müller

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