Ícone do cinema francês, um dos fundadores da Nouvelle Vague e importante colaborador da Cahiers du Cinéma, Jean-Luc Godard tem uma extensa lista de fãs, admiradores e – por que não dizer – detratores. Para muitos, o cineasta é autor de filmes pedantes. Por outro lado, quem compreende sua linguagem e sabe que seus longas podem não ser de fácil digestão, mas carregam uma força que gera análises e estudos por anos a fio sobre os gêneros cinematográficos.

Numa questão todos concordam: seja por sua estética, técnica ou narrativa, Godard é um dos diretores em atividade mais importantes da história, mesmo que muitas vezes não seja reconhecido. Aliás, a própria Academia já reconheceu seu talento em 2011 com um Oscar honorário. E para celebrar os 83 anos que o cineasta completa no dia 3 de dezembro de 2013, a equipe do Papo de Cinema resolveu eleger seus cinco melhores filmes – e mais um que talvez nem seja de menos importância em sua filmografia. Tarefa difícil, já que são mais de 50 anos de excelência dedicados à sétima arte.

 

Acossado (À bout de souffle, 1960)
– por Dimas Tadeu
Quando se fala em Nouvelle Vague muita gente pensa em “filme cabeça” e no oposto ao cinema hollywoodiano. O que esse pessoal não deve notar é que grande parte do movimento que marcou fortemente o cinema francês de vanguarda veio justamente de uma vontade dos cineastas da França de imitar, criticar ou emular o cinema norte americano. Em Acossado, um dos símbolos da Nouvelle Vague, Godard deixa isso bem claro. A começar pelo protagonista, Michel, que imita as caras e bocas de galãs como Humphrey Bogart, até Patricia e seus figurinos, quase de cheerleader, tudo ali remete a um cinema que conhecemos bem. A genialidade da coisa toda está justamente em, a partir daí, criar algo diferente, debochado, que desconstrói o tempo junto com o caráter dos personagens e vai construindo uma narrativa fragmentada, pós-moderna, num estilo que Tarantino e a MTV aproveitariam anos depois. Com um final que talvez sugira o que pode acontecer a “franceses que se metem a americanos”, Acossado é filme obrigatório não só pra quem curte Godard, mas pra qualquer pessoa que quer entender mais sobre a historia do cinema.

 

Viver a Vida (Vivre sa vie: Film en douze tableaux, 1962)
– por Renato Cabral
Anna Karina é, de longe, a grande musa de Godard. Além de ter sido casada com ele, estrelou diversos filmes do diretor. Um de seus grandes papéis se dá em um dos títulos essenciais do realizador, Viver a Vida , e o qual me atrevo a dizer que é um dos melhores para adentrar ao universo do cineasta francês. Na trama, Nana (Karina) abandona a sua vida caseira e família para tentar a carreira de atriz. Chegando em Paris trabalha em uma loja de discos, mas ainda assim não consegue se manter financeiramente. Expulsa de sua moradia decide virar prostituta para se sustentar. E é essa história de Nana que também é a história da própria Anna Karina, o que torna tudo ainda mais especial. Evocando Bretch, Godard apresenta Viver a Vida em 12 quadros (ou capítulos) e ainda consegue, em uma história de uma prostituta e atriz frustrada, trazer textos existencialistas e filosóficos como Sartre e citar Edgar Allan Poe. Detalhe para a cena na loja de discos em que Karina passa boa parte do tempo de costas. Algo impensável no cinema e para os padrões de star system tanto da época como de agora.

 

O Desprezo (Le mépris, 1963)
– por Marcelo Müller
No início de O Desprezo, um dos filmes mais complexos/completos de Jean-Luc Godard, a personagem de Brigitte Bardot questiona a admiração do marido por seus seios, nádegas, pés, tornozelos (todos devidamente explorados pela câmera), e só acusa a própria beleza após ele confessar amá-la “incondicional, terna e tragicamente”. Paul (Michel Piccoli) é roteirista e está às voltas com uma adaptação cinematográfica de Odisseia, de Homero. Ao aceitar carona do produtor, Camille (Bardot) desperta ciúme, evidenciando o processo de degeneração do relacionamento, isso em meio às filmagens regidas por um cineasta interpretado por Fritz Lang em pessoa.  Se na obra adaptada, Ulisses enfrenta intempéries para voltar aos braços da amada, em O Desprezo o que vemos é o agonizar do casamento dos protagonistas, esta união minada por aparentes bobagens que ganham dimensão exagerada, pois insufladas pelos pretéritos desgastes diários.  Godard mescla com habilidade a poética da ruína amorosa com o mito filmado. Observador mordaz, o francês também insere no longa uma série de comentários ferinos sobre o funcionamento por vezes brutal das engrenagens que movem a indústria do cinema.

 

Bande à part (idem, 1964)
– por Willian Silveira
Três semanas antes. Um monte de dinheiro. Uma aula de inglês. Uma casa na beira do rio. Uma garota romântica. É assim que, na voz do próprio Jean-Luc Godard, o narrador resume Bande à part ao público que chegaria atrasado à sala de cinema. Comum nos filme de ação e suspense, o recurso de explicar os acontecimentos aos retardatários é apenas uma das tantas referências que o diretor fará ao cinema americano, em especial ao noir. Na homenagem (não desvinculada da crítica) aqui prestada, filmada em 25 dias e com baixo orçamento, Godard preserva a estética a fim de desconstruir os arquétipos e brincar com o conteúdo. No centro das atenções estão Franz e Arthur, dois trapaceiros que convencem a jovem Odile a colaborar em um assalto. Na contramão dos enredos policiais, em que o núcleo de tudo é a ação, aqui o que reluz é a banalidade das horas perdidas antes do momento crucial. Assim, permitem-se um café descompromissado, uma dança coreografada e uma corrida – antológica – pelo Louvre. Permitem-se inclusive o amor. Diferentemente dos personagens clássicos desse tipo de enredo, Arthur e Franz são ladrões amadores. Os diálogos, longe da dureza costumeira do gênero, são tomados pelo tom existencialista e fragmentados, como manda a cartilha da Nouvelle Vague. Considerado por alguns como o filme menos “Godard” do diretor, é o exemplo perfeito da construção sobre a desconstrução, do reordenar das peças, do ângulo insuspeito: nada mais Godard.

 

O Demônio das Onze Horas (Pierrot Le Fou, 1965)
– por Conrado Heoli
Décimo longa-metragem de Jean-Luc Godard em seus cinco primeiros e prolíficos anos como cineasta, O Demônio das Onze Horas foi divulgado em seu lançamento como a história de “um pequeno soldado que descobre que é preciso viver a vida, que uma mulher é uma mulher e que num novo mundo deve-se viver como um forasteiro para não se descobrir acossado”. As referências a outros filmes de Godard reiteram que esta obra em particular tanto rememora o trabalho do eterno enfant terrible quanto ao novo cinema que ele estava disposto a realizar. Penúltima parceria do diretor com uma das maiores musas do cinema francês e na época sua ex-mulher, Anna Karina, a produção também conta com o icônico Jean-Paul Belmondo numa narrativa que vai além da estética do filme de estrada com referências artísticas que transcendem o cinema, como a poesia, literatura, pintura e música. Karina e Belmondo estão excepcionais como sempre, porém dizer que a dupla tem o filme para si é incorreto. A atração principal de O Demônio das Onze Horas é o próprio Godard, num período de livre experimentação com os ideais da nouvelle vague e que precede suas obras mais políticas e a controversa fase com o grupo Dziga Vertov.

 

+1

 

A Chinesa (La chinoise, 1967)
– por Pedro Henrique Gomes
Godard nunca foi um monstro. Apesar das imagens erigidas em torno de seu nome (do gênio ao cineasta “chato”) e de seus exageros, os filmes merecem mais descanso do olhar. Sendo assim, A Chinesa se inscreve sob o signo de uma revolta: a Guerra do Vietnã é representada com brinquedos conduzidos pelas personagens que se chocam em suas mãos, o espetáculo da guerra tem espaço dentro de um apartamento. Filme de imagens assumidamente artificiais. Godard jamais nos esconderia o artifício da câmera. Mas não sem violência, não sem colocar o espectador diante de uma série de provocações de ordem estética e política. Mas A Chinesa não poderia ser mais direto e acessível, pois ele vai falar sem qualquer ponto de censura. É de uma época que comportava aquele discurso maoísta e que fazia uso amplo da ideia godardiana de cinema, explícita nas palavras de Samuel Fuller em outro filme de Godard (e que expropriamos aqui): depois e apesar de tudo, “o cinema é emoção” mesmo.

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