Neste dia 20 de janeiro David Lynch comemora 70 anos. E nada mais propício do que aproveitar essa data para relembrar o melhor do cineasta, além de resgatar um dos seus filmes mais marcantes, porém ainda pouco conhecido. Diretor, roteirista, compositor, fotografo, produtor e até mesmo ator, David Lynch nasceu no interior dos Estados Unidos, no estado de Montana, e em mais de 40 anos de carreira dirigiu 39 títulos, entre longas, curtas, documentários, videoclipes, minisséries e trabalhos para a televisão. Quatro vezes indicado ao Oscar, ganhou no Festival de Cannes a Palma de Ouro de Melhor Filme por Coração Selvagem (1990) e o prêmio de Melhor Diretor por Cidade dos Sonhos, enquanto que no de Veneza levou um Leão de Ouro Especial por Império dos Sonhos (2006). Foi premiado também no European Film Awards, no César (França), no Independent Spirit Awards, pela Sociedade Nacional dos Críticos dos EUA, e por diversas associações de críticos, como os de Toronto, San Diego, Los Angeles, Chicago e Boston, além de reconhecimentos nas associações da França, Argentina e do Brasil, entre tantas outras. Inventivo, original e nunca medíocre, tem diminuído seu ritmo de trabalho nos últimos anos, deixando os fãs órfãos de novidades. Por isso, para matar essa saudade, relembramos agora alguns dos seus melhores trabalhos. Confira!

 

O Homem Elefante (The Elephant Man, 1980), por Rodrigo de Oliveira

Antes de ser reconhecido pelas histórias oníricas e tramas intrincadas, David Lynch chamou a atenção de todos – com direito a indicações ao Oscar – em seu segundo longa-metragem, O Homem Elefante, em 1980. Baseado em fatos reais, o filme traz John Hurt como o personagem-título, um homem que causava medo e repulsa por ter nascido com uma deformidade calamitosa. Tratado como aberração de circo, John Merrick – nome verdadeiro do chamado “homem elefante” – recebeu tratamento digno apenas quando o doutor Frederick Treves, vivido por Anthony Hopkins, o encontrou e o acolheu em sua residência. Pouco a pouco, Merrick mostrou para Treves e para todos em sua volta que era muito mais do que sua aparência podia supor. Um drama intenso, com atuações maiúsculas de Hurt, Hopkins e Anne Bancroft, O Homem Elefante era a primeira amostra do poderio cinematográfico de David Lynch para o grande público. Apesar das sete indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme e Diretor, prêmio algum foi dado à produção, que hoje é reverenciada e tratada apropriadamente como cult.

 

Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), por Conrado Heoli

David Lynch ainda amargava o fracasso de crítica e bilheteria de Duna (1984) quando escreveu o roteiro de Veludo Azul (1986), que imediatamente foi descartado por praticamente todos os estúdios de Hollywood devido ao seu conteúdo sexual, violento e muitas vezes grotesco. Dino De Laurentiis, reconhecido produtor italiano, aceitou financiar o filme, que atualmente é cultuado e reverenciado como um dos maiores de seu autor. Veludo Azul já se inicia magnificamente, com uma sobreposição de planos que apresentam o paraíso idílico dos subúrbios de Lumberton ao som de Blue Velvet, canção de Bobby Vinton. Na sequência, um idoso morre subitamente e Lynch revela que seu roteiro não pretende discorrer sobre a tranquilidade na sociedade suburbana, mas sim o que a mesma tem de pior. Protagonizado por Kyle MacLachlan e Isabella Rossellini, que surpreende em seu primeiro papel dramático após atuar por anos como modelo, a obra restabeleceu a carreira de Dennis Hopper e proporcionou o primeiro encontro entre Lynch e Laura Dern, que viria a trabalhar com o cineasta em vários outros projetos. Mal visto por críticos mais ortodoxos na época de seu lançamento, Veludo Azul logo foi aclamado e ainda figura em diversas e importantes listas entre os melhores filmes norte-americanos de todos os tempos. Além de garantir a segunda indicação ao Oscar de Melhor Diretor para David Lynch, o impressionante neo-noir possui uma trilha sonora inesquecível e perturbadora criada por Angelo Badalamenti, que a partir deste filme se tornou o principal colaborador do excêntrico realizador.

 

Twin Peaks (Twin Peaks, 1990-1991), por Matheus Bonez

Quem matou Laura Palmer? No início dos anos 1990, esse era uma das principais questões que dominavam a televisão, especialmente a norte-americana. E este era o foco de Twin Peaks, seriado que David Lynch criou (e dirigiu apenas sete dos 22 episódios) sobre o caso da garota que foi encontrada morta na cidadezinha que dá nome à produção. Foi um marco na televisão na época, não apenas pelas suas bizarrices, mas também por imortalizar os famosos cliffhangers que permanecem até hoje nas séries, especialmente às que tem tramas investigativas como foco. Um dos atores preferidos do cineasta, Kyle MacLachlan, protagoniza a produção como o agente especial Dale Cooper, designado para solucionar o caso e que, mesmo após a resolução, é assombrado pelos eventos que culminaram na morte de Laura. Afinal, o seriado não poderia manter a pergunta para sempre e, ao mesmo tempo, precisava continuar, já que tinha uma boa audiência. Infelizmente, durou apenas duas temporadas, cheias de pontas soltas – como qualquer produto do gênero e, principalmente, de David Lynch, deve ser. Em 1992, o filme Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer foi lançado para jogar uma luz sobre os fãs saudosos, mas não houve maior repercussão após isto. Ainda assim, Twin Peaks é uma joia repleta de signos que ainda estão para ser desvendados, mesmo vinte anos depois.

 

Uma História Real (The Straight Story, 1999), por Robledo Milani

Este talvez seja o menos David Lynch de todos os filmes de David Lynch. Uma História Real não apresenta invencionices, elucubrações psicológicas, diálogos com os sonhos e realidades alternativas. Não, aqui, exatamente como diz o título original, temos uma trama straight, direta, linear. Octagenário (Richard Farnsworth, em atuação indicada ao Oscar e no seu último trabalho antes de se suicidar) decide partir numa longa jornada em seu minitrator (aqueles de fazenda, de carregar feno) – o único veículo que tem permissão de dirigir – até o irmão doente, em outro estado. No caminho deixa para trás a filha (Sissy Spacek, excelente) e cruza com diversos tipos, momentos esses em que Lynch aproveita para mostrar seu interesse pelo verdadeiro norte-americano, a pessoa simples do interior que, cada um a seu modo, constrói um país. Esta produção dos Estúdios Disney (!) foi também selecionada para o Festival de Cannes e premiada na Inglaterra, Dinamarca, Espanha e Argentina, além de ter recebido diversos prêmios da crítica nos Estados Unidos e de ter sido indicada ao Globo de Ouro, ao National Board of Review (como um dos dez melhores filmes do ano) e ao Grande Prêmio Brasil de Cinema (Melhor Filme Estrangeiro). É, em última instância, o filme que nos fez lembrar que David Lynch é, antes de tudo, um grande contador de histórias.

 

Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr., 2001), por Marcelo Müller

Hollywood. Rita (bela morena) escapa de um acidente automobilístico nos arredores desse cenário idealizado, bem nas sinuosas curvas da Mulholland Drive, caminho escuro do qual se pode ver fulgurar a Meca do cinema americano. Desmemoriada, a moça encontra Betty (bela loira), atriz que a acolhe, e com ela inicia relacionamento estranho, para dizer o mínimo. Surgem diretores de cinema, cowboys, gângsteres, mendigos, tudo num intrincado suspense de contornos tipicamente lynchianos. Cidade dos Sonhos é pavimentado na instabilidade dos personagens, esta transmitida ao espectador de maneira brilhante. Há pouca sustentação, temos a sensação de vivenciar algo que em si evoca o fascínio pelo cinema, o bom cinema que nos transporta do real para outro lugar. Como dimensionar sem superlativos a sequência no Clube Silêncio, onde Rebekah Del Rio interpreta Llorando e se releva o poder da própria encenação? Lá pelas tantas surge determinada chave dentro de uma caixa azul e, como se regurgitados do filme fôssemos, acabamos noutra realidade (ou seria a mesma?), marcada por engenhosa inversão de papeis. Nada é aleatório, há encaixes e desencaixes de arquitetura e ourivesaria impecáveis. Cidade dos Sonhos é obra-prima.

 

+1

 

Eraserhead (Eraserhead, 1977), por Pedro Henrique Gomes

Em David Lynch, sempre há uma confusão dos sentidos. As peças constantemente se movem para longe de seus lugares de origem, a narrativa subtrai a noção de experiência do cinema e adiciona uma de experiência de imagens. Isso porque seus filmes, e Eraserhead em particular, estabelecem uma atmosfera que joga com os personagens a partir da desconstrução lógica dos acontecimentos. Neste seu longa-metragem de estreia, o delírio, o fantástico, o onírico e o real criam uma história (?) de muitos efeitos (no sentido da resposta que a imagens causam no espectador), mas com poucas saídas. O filme logo arrebenta com as concepções visuais do espectador, apenas para depois ir juntando os cacos até chutar tudo novamente. É assim a movimentação da luz, dos personagens e da própria complexidade de cada fragmento de sonho. No fim, ele é um pouco atrapalhado, mas ainda assim suficientemente pretensioso, como são todos os grandes criadores de imagens.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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